AGROINDÚSTRIA
CÁSSIO FILTER
Q
uando relembra os capí-
tulos amargos da vida,
gotas salgadas despen-
cam do rosto de Jucélia.
É que hoje o mundo dela é doce.
Tão doce, que é de açucarar a vida
alheia que ela, o marido e os três
filhos vivem na localidade de Pas-
so da Taquara, no interior de São
Pedro do Sul. Mesmo em tempos
de crise, a agroindústria dos Ebling
empanturra-se de bons negócios
oriundosdavendademelado, açú-
carmascavoe rapadura.
Quemandapelaestradadechão
logo encontra a fábrica da Tacho
Docenapaisagem. Emmeioàs con-
tínuas plantações de soja e às cria-
ções de gado, os sete hectares de
cana-de-açúcar anunciamo peque-
no parque fabril, escoltado por den-
sasombradecinamomoscommais
demeio século. Conhecer o sistema
deproduçãodeJucéliaedomarido
Hildoé comoentrar numamáquina
dotempo.Naprimeirapartedopro-
cesso, oritual éomesmodeséculos
passados.Ocortedacanaémanual.
Otransportedaroçaparaogalpãoé
feito em carroça de madeira, puxa-
da por um trator. E, lógico, poucos
sons representam tanto a vida rural
como as engrenagens do engenho
a movimentar a moenda para ex-
trair aguarapaedescartarobagaço.
Já a finalização obedece a todos
os detalhes da severa legislação
dificuldadesdo
passadoMOTIVARAM
oseblingrumo
Aosonhode
empreender,
EELESAPOSTARAMNA
INDÚSTRIADACANA
O ladodocedavida
que rege a produção de alimentos:
roupas brancas, toucas no cabelo,
paredes com azulejos, tachos de
acordocomasnormas, ferramentas
e aparelhos, entre outros detalhes.
ASDIFICULDADESDOINÍCIO
Jucélianãoescondequeaadap-
tação foi difícil. “A umidade do ar, a
temperatura ao ambiente e o pa-
drão do fogo eram bem diferentes
dequandoagenteproduzianogal-
pão. Parecia que a gente tinha de-
saprendido a fazer. Mas empoucas
semanas já conseguimos ajustar e
manter opadrãodequalidade, que
sempre foi nossa marca maior”, re-
lembra. E ela considera o ajuste da
produção menos penoso do que
a complexidade dos trâmites bu-
rocráticos para a implantação da
fábrica. “Foram dois anos de insis-
tência até cumprir todas as etapas
de documentos. É uma maratona.
Tem de ter paciência e persistên-
cia. Mas valeu muito a pena, tanto
quehojesomosatéelogiadospelas
fiscalizações rotineiras”, comenta a
empreendedora.
Desde as primeiras tachadas de
melado, a fama das iguarias dos
Ebling correu a região. As cinco va-
riedadesdecana-de-açúcarquecul-
tivam rendem cerca de 150 quilos
de melado por dia. Quando o fluxo
de produção é grande, a jornada
de trabalho vai madrugada aden-
tro. “Nós dois conhecemos todas
as etapas da fabricação. Isto ajuda
muito. Para cortar vamos os dois,
paracuidarafervuravamososdois,
para monitorar o fogo vamos os
dois; para embalar, vamos os dois”,
explica Hildo, que enxerga como
privilégio o fato de poder trabalhar
emcasaeacompanharocrescimen-
to dos filhos Fernanda (23), Valéria
(13) eGuilherme (12). Aliás, foramas
sílabas iniciais dos nomes dos três
que formaramamarca-fantasia dos
produtos que adoçama vida demi-
lhares de pessoas e nutrem os so-
nhos da família de expandir ainda
mais aprodução.
Os olhos de Jucélia ainda se enchem de lágrimas
quandoela lembraodiaemque, aindacriança, foi obri-
gadapelopaiaabandonarosestudos.Asaídaprematu-
radocolégiosignificoulacunaparaJucéliaanosdepois,
quandonasceuafilhaFernanda, hojecom23anos.Por-
tadora de uma síndrome raríssima, a menina precisou
de complexos tratamentos para sobreviver. Enquanto
Hildo trabalhava cercade 18 horas por diaparabancar
as despesas, Jucélia desdobrava-se em consultórios,
hospitais, repartições públicas e centros de saúde em
PortoAlegreeSantaMariaparamanterafilhaviva.
A epopeia deu resultado. Hoje, basta observar o vo-
cabulário vasto e a organização das ideias para perce-
ber que as lições que não teve no colégio a agricultora
aprendeu comomundo, o que, segundo ela, fez toda a
diferençaparaquesetornasseumaempreendedoraau-
todidata. “Seagenteparaeobserva, estaempresasóé
uma realidade porque a gente aprendeumuito comos
problemasdaFernanda.Nahoradapapelada,doproje-
to, quando precisava carimbo aqui, assinatura lá, dava
uma vontade de desistir”, relata. “Mas daí eu e o Hildo
pensávamos: poxa, já passamos por tanta coisa, e va-
mos desistir agora? Daí a gente respirava fundo e insis-
tia.Nadafoifácilparaagente,masvaleucadaesforço”.
A cumplicidade do casal possivelmente é o gran-
de segredo para que a empresa tenha frutificado e já
tenha clientes cativos em cidades como Uruguaiana,
São Gabriel e Alegrete, além de atender a estabele-
cimentos de São Pedro do Sul, Santa Maria e Itaara.
Cada fração dos R$ 130 mil investidos na fábrica foi
avaliada emdetalhes por ela e pelomarido. “A gente
conversa junto, agenteaprende junto. Sempre fomos
muito unidos. Acho que omais gostoso é isso: ganhar
o dinheiro junto e gastar o dinheiro junto”, define Hil-
do, que tem uma teoria particular sobre o funciona-
mento de uma agroindústria. Segundo ele, “semmu-
lher junto a coisa não funciona. Ela é mais detalhista
e, às vezes, persistente”, sentencia.
Cozinhando as dificuldades em fogo baixo
JucéliaEblingalcançouarealizaçãopessoaledafamíliacomaindustrializaçãodacanacultivadaemsetehectares
A família Ebling e os doces:
os filhos Fernanda, Valéria
eGuilherme comos pais
Jucélia eHildo.
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JORNAL DA
EMATER
março de 2018